As crianças, Senhor...




A sociedade portuguesa perdeu, há muito, a noção de valores e tripudiou sobre as regras de convivência.

Lenta mas inexorável uma endemia de dissolução alastrou, de tal forma, que põe em causa a própria razão do ser individual.
Abandonámos um conceito de destino e desinteressámo-nos da ideia de futuro, se alguma vez a ambos tivemos (…)

Meio século de cantochão, bota cardada, medos vários, foram as insígnias das nossas obediências.
No Abril antigo, o bandolim pareceu tocar a nossa música. (…), andámos a lavar as ruas, a oferecer à pátria um dia de salário e a gritar um estribilho que fora funesto no Chile: "O povo unido jamais será vencido!" Pois sim!
Fui um daqueles que deitou foguetes. E ainda me resta uma pequena fagulha, apesar de o desemprego correr a galope, de os nossos velhos morrerem nos jardins, e de termos atingido, agora, a abjecção com o que fazemos aos nossos miúdos: abandonamo-los, enchemo-los de miséria, de fome e de morte por extinção moral.Anteontem, os jornais alargaram-se em notícias sobre estes sacrilégios.
Porque há pais que abandonam os filhos?
Que desespero incontido pode levar alguém a deixar uma criança à bússola do acaso?
E que bizarro mecanismo mental encaminha progenitores a não dar de comer aos seus miúdos, mas a adquirir-lhes roupas de marca? Pensemos duas vezes.

A família tem cada vez mais dificuldade em se representar. Mas foi a família que se não opôs às imposições de uma sociedade, cuja inconsistência transformou o secundário em primordial. O desprezo pelos miúdos conduz a conflitos profundos com as suas personalidades. Porém, o Estado abandonou os pais, e os pais deixaram de se interessar, no essencial, pelos filhos.
O círculo ainda não encerrou. E as notícias a que me refiro advertem da existência de uma compressão da época e de um mal da alma, resumidos nesta frase medonha: "Não tenho tempo a perder."
Não temos tempo a perder com quem?
Com os nossos filhos?
Com os outros? Connosco próprios?
Estamos a encurtar tudo (a vida, o amor, a amizade, o ócio) com melancólica leviandade.
"Às duas por três nascemos/às duas por três morremos/e a vida? /não a vivemos" - ensinou Alexandre O'Neill. Nunca ouvimos os poetas.

Não há unidade nem absoluto possível se não conseguirmos travar a marcha de um sistema doente, cuja natureza se opõe à partilha, e tem destruído e aniquilado o melhor dos nossos sentimentos e emoções.
Fonte:-DN/Batista Basto

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Condes de Alte

Senhorio d´Alte, sua formação